Valores que se interligam
Chega um tempo, em nossa senda, que é preciso reconhecer que somos o que de fato retemos na memória. As lembranças de tempos idos e as nossas experiências são tudo o que compreende o nosso “EU” de hoje. Assim, uma coisa vai levando à outra, e quando percebemos, tudo se interliga.
Enquanto me deslocava para uma clínica médica, o motorista do taxi, um velho amigo comentava sobre a dificuldade em conseguir alguém para limpar o carro, pois os antigos lavadores de carro da rua só querem ser agora “flanelinhas” – cuidadores de carro –, pois ganham muito mais, sem grandes esforços.
Num vai e vem de conversas, entramos naturalmente na questão da violência que bate a nossa porta diariamente, quando o amigo, indignado, comentou sobre um vídeo que estava sendo divulgado nas redes sociais, mostrando uma criança sendo orientada pelo pai a desenvolver a função de pedreiro. Segundo ele, esse pai estava sendo processado por exploração de mão de obra infantil.
Continuando o discurso, ele dizia: – Isso é um absurdo minha amiga! Onde já se viu um pai querer o bem para o filho e ser processado!
E continuou:
– Quando menino, meus pais tinham um sitiozinho lá pelo interior do estado. Além de plantar o necessário para a família, ele ainda criava umas poucas cabeças de gado, bodes e ovelhas, galinhas e patos, o suficiente para o nosso sustento. A vida sacrificada, não permitia gastos extras e não tinha como pagar pessoas para ajudá-lo, o jeito era se virar com os filhos e a minha mãe. Além dos estudos, as meninas se responsabilizavam com as coisas da casa e do quintal, e nós, os meninos, cada um tinha a sua missão. E ai daquele que não a cumprisse. A peia cantava alto.
Na década de cinquenta – continuou a contar, tivemos uma seca braba, daquelas que até os bichos ficavam procurando sombra. Nessa época, sem pastos, e pagando caro a ração para manter os animais vivos, meu pai me incumbia de ir atrás de brotos de catingueira (planta da caatinga, que resiste bem a seca, e que serve de comida para as ovelhas e bodes). O segredo era pegar só os brotos lá do alto, pois as folhas mais velhas eram duras como plástico e os animais se engasgavam. Às vezes chegavam a óbito.
Deu uma parada, pigarreou e continuou:
– Saía logo cedo montado no único cavalo que tínhamos, carregando dois sacos grandes que quase arrastavam no chão. Tinha por obrigação, trazê-los cheio de broto de catingueira. Passava, às vezes, o dia todo para cumprir a missão, pois com o longo estio, a planta também escasseava. Mas, só voltava, quando dava conta do recado. E assim levávamos a vida felizes e satisfeitos. Sempre tínhamos o que comer e vestir. Os que quiseram estudar se formaram; outros como eu, seguiram caminhos diferentes. Eu preferi trabalhar como motorista de caminhão, pegando estradas. Hoje, já cansado, optei por trabalhar na praça, com táxi, mas sou feliz!
E ele, de repente, calou-se.
Finalmente cheguei ao meu destino. E ainda refletindo sobre a conversa recente...
Enquanto aguardava a vez no atendimento, resolvi exercitar a minha mente com outro assunto: aproveitei para fazer análise de uma foto, para futuros trabalhos.
A foto retratava uma criança montada num cavalo, num bonito dia de sol (sempre desejei montar um).
Avaliando a foto, vi que era visível a postura tranquila e imponente do garoto sobre o dorso do animal, e este sob o seu domínio, através das rédeas, seguramente presas as suas mãos, expressando uma cumplicidade invejável, de amizade entre ambos.
Provavelmente era um morador de algum sítio da redondeza. Menino de cidade não anda a cavalo. Seus passatempos são outros.
Cada vez mais atenta aos detalhes, observei a paisagem no seu entorno. Céu com poucas nuvens e copas de carnaubeiras (planta comum nas margens e várzeas de rios ou riachos, características fortes, do sertão nordestino).
Ainda buscando enxergar, além daquela imagem, imediatamente a liguei à história há pouco, ouvida.
Logicamente, que os tempos eram outros, mas me perguntei se o garoto da foto, não teria uma vida parecida com a do meu amigo quando criança.
Pela timidez do olhar, diante da câmera fotográfica, eu diria que sim, pois os meninos da cidade são mais despachados. Mas, não bastaria essa diferença, para rotulá-lo.
Volto a fitar a foto e num devaneio... percebo um céu limpo, a crina desgrenhada do animal, sugerindo um vento brando, que vai se alastrando em direção das carnaubeiras, movimentando os seus grandes leques, produzindo no ar uns sons de tec, tec, tec...
Fico imaginando a vida tranquila que se tem num sítio, oposta aquelas das cidades. Os brinquedos são diferentes, as responsabilidades e obrigações também, mas uma coisa é certa: os valores morais que moldam o nosso caráter, independente do espaço social vigente, devem ser repassados como lições a serem seguidas e praticadas, para que sejamos verdadeiros autores da nossa história.