O dia amanhecera um aguaceiro só. As chuvas incessantes se desmanchavam em corredeiras barrentas no meio-fio das ruas.
O barulho da chuva no telhado embalava o seu sono já leve, no andar adiantado dos ponteiros do relógio, anunciando o novo dia.
Ainda debaixo das cobertas quentinhas, ouviu, pela enésima vez, o chamado de sua mãe. “Acorda, menina! Preciso chegar cedo lá no hospital.”
Fingindo dormir, nem se mexeu. Mas, logo a seguir, foi chacoalhada pela genitora que, já sem paciência e num movimento brusco, a descobriu.
Um arrepio tomou conta do seu corpo. O jeito foi se levantar, não sem aquela preguiça, que embaça os olhos.
Tomou um banho rápido, pois a água na bacia já estava só morna. Enrolou-se na toalha fina, feita de saco de farinha, mas, toda de franja, no macramê – capricho de sua mãe –, e ficou ali até um novo chamado.
Enquanto se vestia, foi relembrando o rebuliço da última semana.
A preparação da sua mãe para dar à luz ao sétimo filho. Era um tal de lavar as roupas de cama e do bebê, limpeza geral na casa, arrumar a bolsa para levar para o hospital. Enfim, ela, como filha mais velha, mesmo pequena, ainda teve que ajudar nessa arrumação.
Sentindo-se aliviada, calçou os sapatinhos lilases. Ficavam lindos em seus pés! Alisou o vestido que combinava com os sapatos. Era de um tecido meio acetinado, de cor lilás bem clarinho. A mãe, embora costureira de mão-cheia, mandara confeccioná-lo em um ateliê, pois o momento – o casamento de uma prima – exigia algo mais bem estruturado.
Por certo, aquele também era um momento especial, pois a mãe separara a roupa e os sapatos para a ocasião.
Feliz da vida e esperando um elogio, ela se apresentou para a mãe que, na correria em deixar tudo organizado para os irmãos – alguns, ainda dormindo –, não fez nenhum comentário.
Chateada, comeu a fatia de pão acompanhada de uma canequinha de leite quente com café, sob as recomendações da mãe para não sujar a roupa!
Quase arrastada pela mão e dando passos maiores que as pernas, seguia preocupada, pois ainda garoava e, com certeza, ia molhar o seu lindo vestido. Entretanto, o desgosto maior foi quando teve que correr para pegar o ônibus que já se afastava da parada.
Sem olhar por onde andava, pisou numa poça d’água, encharcando seus lindos sapatinhos lilases. Quis chorar, mas não teve tempo. Quando viu, já estava sendo empurrada entre as pessoas que lotavam o transporte público.
Chegaram a tempo ao hospital para que a mãe pudesse amamentar a irmãzinha que nascera com complicações e tivera de ficar na incubadora por alguns dias.
Enquanto esperava, num dos corredores da maternidade, olhava para os pés enlameados, desejando voltar logo para casa e limpá-los. Tão absorta estava que nem ouviu a enfermeira chamá-la para conhecer a irmã mais nova. Foi preciso um leve toque.
Temporariamente, esqueceu-se dos sapatos e correu para ver a irmã. Na sala, algumas mamães também amamentavam os seus bebês, porém a sua irmãzinha era a mais bonita!
Repetiu aquela maratona durante a semana toda, quando, por fim, a irmã recebeu alta médica.
Os sapatinhos lilases? Por sorte não sofreram grandes danos e enfeitaram os seus pés enquanto lhes couberam. Em suas lembranças? Permanecem intactos.