Entregue ao marasmo daquela tarde de domingo, esticou-se na poltrona, sem ânimo para fazer uma leitura, ou mesmo assistir à programação da TV.
Fechou os olhos e sem querer se pegou atenta aos ruídos da vizinhança: gritos infantis, canto de pássaros, trechos de canções bregas – vindas de longe, conforme a dança dos ventos – e até o tic-tac do relógio de parede se sobrepondo aos demais sons.
Automaticamente, começou a cantarolar a canção que lhe chegava aos ouvidos...
Quantas vezes nós dissemos: Eu te amo
Pra tentar sobreviver…
Aparências, nada mais
Sustentaram nossas vidas
Que apesar de mal vividas
Têm ainda a esperança de poder viver…”.
Que delícia!
Achou interessante a denominação de “brega” para as canções românticas antigas. Curiosa, foi pesquisar pelo celular.
Segundo o Wikipedia: “Brega é um gênero musical brasileiro. Sua definição como estética musical tem sido um tanto difícil, pois não há um só ritmo musical propriamente ‘brega’. É muito usado para designar a música romântica popular de ‘baixa qualidade’, com exageros dramáticos ou ingenuidade”.
Percebeu que as informações sobre a origem do termo “brega” não paravam ali. Ela, com certeza, não classificaria aquela canção que lhe era tão querida, como de baixa qualidade.
Pensando melhor, reconheceu que nem sempre as canções bregas são antigas. Hoje, junta-se, ao já existente, um repertório bem moderno. Pelo Nordeste, a música brega é tida como “música de roedeira” – música para quem está sofrendo por amor. Suas letras falam de amores proibidos, de traições, de paixões desenfreadas, grandes amores, de sonhos; enfim, possuem letras românticas populares. Como o povão não esconde os seus sentimentos, ao contrário, prefere gritá-los aos quatro ventos, temos assim então as canções bregas!
Mais popular do que se imagina – embora fossem muito tocadas nos famosos cabarés (prostíbulos) da cidade – hoje são comuns nos bares noturnos, nas famosas serestas.
O relógio badala arrastadamente duas vezes, alertando a hora certa e, também, tirando-a do devaneio. Desnorteada, apenas muda de foco e de nuvem…
Focada agora no tic-tac do relógio, avalia a idade dele. Mais antigo do que andar para frente, o danado já entrou para a casa dos quarenta e oito anos, só com ela. Nem imagina o seu tempo real. Já faz parte agora do layout da sua vida. Talvez esteja com pouca corda, daí estar quase parando. Se pensasse como humano, já estaria requerendo a aposentadoria. Sabia que, assim como as pessoas, eles, os relógios antigos, precisam de corda e prumo para funcionarem direito!
Entre risos mudos, lembra, com carinho, que ele foi presente de casamento, ofertado pelos sogros. O sr. João, o sogro, tinha, como hobby, consertar relógios antigos. Eram tantos nas paredes de sua casa que, quando começavam a badalar, formavam uma verdadeira sinfonia. Cada qual no seu próprio tom.
Aquele em sua parede tem o formato do número oito, sendo o círculo do mostrador maior que o do pêndulo. Ele já marcou muitas situações em seu percurso de vida. Algumas alegres outras nem tanto, mas todas com a precisão do momento.
Ela já brigou muito com os seus ponteiros, querendo a eternização de uma fração do tempo, assim como o correr desses, facilitando a fuga para o futuro, longe do aperreio.
Na verdade, em sua precisão, ele sempre caminhou sem pressa, independente dos seus quereres. Sempre coube a ela se enquadrar nos seus intervalos de tempo. Pensando bem, poucos foram os momentos em que o seu relógio de parede esteve apenas como objeto decorativo. Pelo contrário, era sempre funcional.
Adora o seu som característico, principalmente no silêncio da noite, quando o mundo se aquieta, mas ele permanece atento, registrando, marcando.
Fosse o badalo do relógio, fosse pela canção ao longe, pensou sobre coisas que marcam nossa vida: um cheiro, uma imagem, um sabor, um som.
Por falar em som, novamente se deixa levar pelo brega – quase inaudível...
...Tens a beleza da rosa,
uma das flores mais formosas
tu és a flor do meu lindo jardim
e eu a quero só para mim...