Antes mesmo que o sol desponte no horizonte, ela já está acordada, tentando se lembrar das coisas que ainda tem que fazer, antes de pegar a estrada.
Desde o início da pandemia da covid-19, sua rotina vem sofrendo algumas reviravoltas que, hoje, ela sabe, ficarão para sempre, ou pelo menos por mais um bom tempo.
Suas saídas nos dias de sexta-feira, logo cedo, com destino às praias, é uma dessas mudanças. Por que as praias? Porque, além de ser um passeio prazeroso, geralmente estão vazias e se consegue caminhar à procura dos tesouros deixados na areia, no fluxo e refluxo das águas: conchinhas, búzios, caramujos, pedaços de corais. E até correr sem nenhum empecilho.
Explicando.
Atualmente, ela mora num apartamento minúsculo, ajustado ao seu poder aquisitivo, lógico! Por ela, dançaria valsa no banheiro, mas termina por se conformar com o famoso “dois pra lá, dois pra cá” no seu humilde “apertamento”. Motivo esse, diria até o maior, dos passeios às sextas. E, também, por ser o dia em que a faxineira vai cuidar da limpeza geral. Ficar batendo os cotovelos uns nos outros nunca foi seu programa preferido, daí escolher se ausentar. Fica tudo mais fácil!
Tal rotina tem sido sagrada. Ela organiza o que pode na quinta-feira; e, o restante, a sua secretária conclui na sexta. Porém, de uns tempos para cá, mais um personagem entrou na história: o netinho da secretária. Ela nem sabe pronunciar direito o nome dele, mas parece um bom menino. Entra acanhado, cabisbaixo e se senta, de imediato, como que a pretender não atrapalhar no pequeno espaço.
Com apenas seis aninhos, responde resumidamente ao que lhe é perguntado, isso depois de conferir o olhar da avó, é claro. Procura, desta forma, deixá-lo confortável, no entanto é notório o temor nos seus pequeninos olhos. Liga a TV e tenta sintonizar em seus desenhos preferidos, mas fica mudando os canais e observando o seu semblante, pelo canto do olho, até ele sorrir, num sinal de aceite.
Dentro do seu pequeno mundo, ele fica mais à vontade. A avó, preocupada em não atrapalhar, também relaxa um pouco. Começam logo, as duas, a pôr em dia as últimas novidades – uma enquanto confere o crescimento das plantinhas, e a outra terminando os seus preparativos antes de sair.
À medida que o faz, revê mentalmente o sacrifício daquela avó. Ultimamente tem sido assim: ela chega para o trabalho sempre acompanhada do neto. Sem ter com quem deixá-lo, e preocupada em ganhar o pão de cada dia, arrasta-o por onde anda. A mãe do pequeno – uma quase menina – tem se voltado para o tratamento da filha caçula que, com apenas três meses de vida, já se submeteu a uma cirurgia delicadíssima. Esse fato a tem levado a se ausentar constantemente de casa, ficando sujeita ao atendimento médico público na capital, enfrentando filas e mais filas – sem contar com a precariedade das acomodações nas casas de apoio.
Estremece diante de tais pensamentos e relembra quantas e quantas vezes o seu mundo já ficou tingido de cinza chumbo, diante de situações bem mais simples.
Vai até a janela para conferir o tempo e percebe que o dia está lindo! O sol já se distancia da linha do horizonte, iluminando a todos. Os pássaros ganham o espaço sem limites daquela manhã em busca do próprio alimento ou, quem sabe, para os filhotes.
A vida pulsa em cada ser do Universo. O verde exuberante das mangueiras já se cobrindo de flores, parece a cartola do mágico de onde, vez por outra, sai uma revoada de bem-te-vis.
Enlevada pela beleza do momento, assusta-se ao chamado do esposo.
Novamente com os pés no chão, revê os pensamentos angustiantes de há pouco e percebe a necessidade das lutas travadas, para o aperfeiçoamento de cada um.
Pega a bolsa, dá uma arrumadinha no cabelo e vai saindo. Ao passar pela sala, ainda flagra o sorriso do garoto. Agradece a Deus pela oportunidade de servir.
Percebe que, para se fazer feliz, não basta olhar a paisagem através da janela, é preciso olhar a janela da alma do seu próximo mais próximo.
Com o coração a transbordar gratidão, veste o seu mais belo sorriso e pega a estrada em busca de mais uma rotina.